
Passados quase seis meses da confirmação dos primeiros casos de Covid19 no Brasil, os números oficiais hoje apontam quase um milhão e meio de pessoas infectadas e beiram trágicas 60 mil mortes. Apesar da enfadonha informação que abre nosso post, trataremos aqui de um aspecto bem específico desse contexto, amplamente difundido no Brasil e no mundo: a recomendação (quando não uma obrigatoriedade) do uso de máscaras de proteção, como modo de conter o avanço do coronavirus. Governos, organizações da sociedade civil e até mesmo empresas estão empenhadas em espalhar informações sobre o uso correto desse item. Máscaras são amplamente ofertadas, sejam elas para doação ou venda. Vamos comentar aspectos da produção e distribuição desse artigo de proteção individual e como se dá a relação entre tal assunto e as cultura hacker e maker e a filosofia do código aberto
Máscaras de pano
Tornou-se bastante fácil encontrar máscaras de pano produzidas por pessoas “comuns” ou por pequenas confecções, sejam elas pra uso próprio ou fornecimento de terceiros. Essa produção tão espalhada ajuda a agilizar sua distribuição, o que é muito bom se pensarmos especialmente em pessoas e comunidades que não poderiam se organizar para comprá-las de estabelecimentos comerciais tradicionais (seja por dificuldade de acesso geográfico, por custo financeiro ou por outros motivos).

Vamos olhar um pouco mais a fundo o que permitiu essa produção distribuída?
Para confeccionar máscaras que sejam eficazes na redução da contaminação pelo coronavirus, são necessários basicamente três elementos: matéria-prima (tecidos ou malhas, linha de costura e elástico), ferramentas (tesoura e agulha ou máquina de costura) e conhecimento técnico (tanto o conhecimento geral sobre costura quanto o específico para a efetividade de proteção desse tipo de máscara).
Todos os elementos citados são facilmente encontrados em quase todos cantos do mundo, ou ao menos estão muito próximos de pessoas comuns. Para adquiri-los não é necessário qualquer tipo de permissão especial. A técnica da costura, inclusive, é um saber popular que em muitas famílias ainda é transmitido entre gerações e amplamente praticado. Podemos, então, afirmar que esse conjunto de circunstâncias foi fundamental para que houvesse uma rápida e descentralizada produção e distribuição de máscaras pelo planeta, correto?
Então vamos agora investigar o caso da produção de outro tipo de equipamento de proteção individual, conhecido como faceshield, cujo uso indicado é idicado para profissionais da saúde (médicxs, enfermeirxs, atendentes, equipes de limpeza, de transporte etc).*
Faceshield
Para confeccionar um faceshield, geralmente são necessários os elementos: matéria-prima (chapas de acrílico ou acetato, uma estrutura parecida com uma tiara, nos mesmos materiais ou em plástico), ferramentas (máquina de corte a laser e opcionalmente impressora 3D) e conhecimento técnico (de operação da máquina e de leitura das especificações dos cortes).
Embora não sejam tão facilmente encontrados como no caso da máscara de pano, tais recursos também estão bem distribuídos pelo planeta. Os acetatos e acrílicos podem ser adquiridos em fornecedores para gráficas ou até mesmo em algumas papelarias. As máquinas de corte a laser são comuns em gráficas de pequeno porte. Impressoras 3D também têm se tornado aquisições acessíveis, bem como o conhecimento técnico que orienta o uso dessas ferramentas. Ainda que de modo reduzido em comparação à produção das máscaras de pano, uma rápida confecção e distribuição de faceshields também se provou bastante viável, além de muito bem vinda quando focada em proteger pessoas que atuam diariamente em ambientes de altíssimo grau de contaminação pelo coronavirus.
Tanto no caso da máscara de pano quanto do faceshield, queremos evidenciar aqui o quanto ela é possível graças ao trabalho constante de pessoas e organizações dedicadas a defender a livre circulação de diversos tipos de conhecimentos e tecnologias: hackers.
Sim, você leu direito. Embora termo hacker venha sendo há muito tempo usado em tom difamatório, ele descreve integrantes de uma comunidade internacional de pessoas que defendem a autonomia e proteção de indivíduos, frente a instituições de grande poder que teriam potencial para oprimi-las de diversos modos. Pra aprofundar o tópico, recomendamos a leitura desse texto aqui.
Portanto, sinalizamos que são justamente hackers que defendem que tanto o conhecimento técnico quanto as ferramentas que podem ser usadas para confeccionar essas proteções devem ser amplamente distribuídas pelo mundo. Mais do que isso, defendem que as orientações de como produzir tais objetos sejam de código aberto, ou seja, que a documentação que acompanha cada projeto possa ser investigada e adaptada, se necessário, às especificidades do local onde elas serão usadas.
Então hackers estão ajudando a proteger o país do Coronavirus? Ô se sim!
No Brasil, um dos movimentos que surgiu para tentar dar conta do fornecimento de EPIs (Equipamento de Proteção Individual, categoria na qual a faceshield se enquadra) foi o #cadaimpressaoconta. Unindo hackerspaces, makerspaces, laboratórios acadêmicos, fornecedores industriais, gráficas, outras organizações pessoas sem vínculo com nenhum destes, o arranjo autônomo vem produzindo e distribuindo gratuitamente dezenas de milhares de faceshields desde março de 2020.

Em Porto Alegre/RS, a partir do Centro Tecnológico de Acessibilidade do IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul) uma rede de ação foi criada para unir iniciativas que quisessem apoiar-se na confecção e distribuição desses EPIs: somaram-se ao Instituto o grupo Brothers in Arms do Pacto Alegre e o LIPECIN (espaço de inovação da UFCSPA/Santa Casa de Misericórdia). Depois de pesquisas junto a rede mundial de FabLabs, um modelo foi escolhido e a produção iniciada. No dia em que conversamos com o professor André Peres, ele nos contou que estava finalizando a fabricação de 180 faceshields que seriam entregues a 4 cooperativas de catadores de lixo, via um dos projeto de extensão do IFRS campus Porto Alegre (“Saúde e Segurança do Trabalho de Catadores no contexto da Pandemia”). A documentação está toda disponível neste link aqui.

No estado do Recife, uma das iniciativas focadas em produzir e distrbuir gratuitamente faceshields está sendo puxada pelo FabLab Recife, que entre outras atuações é um laboratório de produção digital, adepto do internacional Movimento Maker. Com a colaboração de quase 20 outras organizações e com um financiamento coletivo apoiado por mais de uma centena de pessoas, já foram produzidos 28.000 faceshields, entregues para mais de 80 hospitais e instituições de Pernambuco. Nesse vídeo aqui, um dos coordenadores do FabLab conta um pouco do processo e de uma das mobilizações que o originaram, frente à ameaça de colapso do sistema médico brasileiro.

Centenas de faceshields também já foram produzidos e distribuídos em Santarém (Pará), pela Universidade Federal do Oeste do Pará, em parceria com uma ONG local, onde em ocasiões normais o atendimento de saúde às comunidades ribeirinhas já é bastante desafiador. Vale citar que várias outras universidades brasileiras também estão aderindo ao mesmo movimento.
Além dos exemplos citados acima, incontáveis outras iniciativas têm empenhado-se em produzir e distribuir faceshields pelo país.
Esteja sob o rótulo de Cultura Hacker, Cultura Maker ou ainda de Ciência Aberta, o que essas iniciativas têm em consenso é uma filosofia que defende, essencialmente, a liberação e difusão do conhecimento como bem comum humanitário.
O contexto da atual pandemia global nos dá muito o que pensar e questionar sobre o quanto essa abertura de conhecimento e a descentralização da produção de diversos itens essenciais à vida humana está, de fato, ao alcance das comunidades humanas espalhadas pelo mundo. A centralização de certos recursos evidencia, por exemplo, ineficiência das administrações públicas para lidar com o que estamos vivendo, sejam quais forem os motivos que levaram a esse status. Tampouco podemos apostar na dependência da iniciativa privada e sua inacessibilidade para pautar como queremos que sejam atendidas questões de saúde pública ou mesmo de outras áreas da vida humana.
Dito isso, endossamos a perspectiva de hackers e makers na defesa do conhecimento livre e do código aberto, para que pessoas e organizações da sociedade civil possam conquistar autonomia de gerir recursos de suas vidas e comunidades, de acordo com suas especificidades locais. Quanto mais conhecimento compartilhado, menores tendem a ser os riscos envolvidos nessas tomadas de decisão.
Obviamente que não temos a ingênua visão de dispensar regulamentações oficiais, muito menos de ignorar as responsabilidades trazidas com a ação autônoma – o que enfatizamos é que o fechamento total de acesso a conhecimentos, sob a desculpa de preocupação com aspectos de segurança (das pessoas ou da propriedade intelectual), tampouco faz sentido.
Por fim, propomos um questionamento: diante desse exemplo (e de vários outros que poderíamos citar) de como o conhecimento livre e o código aberto colaboram positivamente para o bem estar da vida humana, o quanto ainda vale defendermos sistemas de patentes e de propriedade intelectual acerca de diversos tipos de criações humanas?

Outras iniciativas que foram referência para a elaboração dessa publicação:
– Makers Contra Covid, site que reúne informações e conteúdos sobre como colaborar com o movimento de produção e distribuição de faceshields.
– Vídeo da Apresentação da pesquisadora Marina Freitas sobre Tecnologias Abertas no combate a pandemia, para o I Fórum Integrado de Tecnologia da URI Santo Ângelo
– Série de vídeos do Canal Maker (YouTube) “Como makers têm ajudado a enfrentar a Covid-19?“.
– Vídeo de conversa online do movimento Segura a Onda BR “Makers e hackers no combate à pandemia“.
– Fórum do projeto Segura a Onda BR, onde existe um tópico específico sobre Ciência e Tecnologia Aberta, mapeando e conectando iniciativas de produção de faceshields.
– Mapa colaborativo de ações de prevenção e combate ao coronavirus, onde as iniciativas podem ser buscadas por localização geográfica e/ou pesquisando por palavras.
*Cabe citar que equipamentos de uso médico têm regulamentações específicas às quais devem responder, que geralmente variam de país para país. Nossa intenção aqui não é ignorar tais normas, mas sim enfatizar que a descentralização da produção de faceshields permitiu ampliar e agilizar a proteção de profissionais da área médica e de cuidados num curto espaço de tempo, e que dado o grave contexto causado pela pandemia toda proteção adicional a essas pessoas é muito bem vinda.