Dia desses eu fiz um retiro budista online. O tema foi ‘Primavera – lucidez para seguir adiante‘. Embora não seja grande estudiosa nem praticante disciplinada de budismo, sempre tive identificação com modo como tal filosofia faz uma ponte muito sensata entre seus ensinamentos milenares e a vida cotidiana.
Entre as várias falas compartilhadas pelo Lama, algumas me chamaram mais atenção, e é a partir das minhas divagações sobre elas e sobre outras referências que escrevo algumas linhas por aqui.
Como só se fala nisso, a pandemia e suas bruscas rupturas de quase todas rotinas da vida cotidiana foram assunto recorrente durante o retiro. Estávamos em consenso ao compreender que o momento é um daqueles em que somos forçados a parar ou a mudar radicalmente (tanto quanto indivíduos quanto como organizações dos mais diversos tipos) nosso modo de operação e de relacionamento com outros indivíduos e organizações – o conceito de uma vida “normal” soa tal como algo bem distante pro momento.
Entendíamos que mirar atenciosamente pra dentro desse modo de operação (seja institucional, relacional ou mesmo íntimo) é uma ação vinda tanto como parte dos ensinamentos budistas quanto por imposição inescapável pro momento. E foi aqui que eu comecei a tecer minhas tramas mentais, assumindo que daqui a mirada pode tomar duas frentes:
Foco no produtivismo
1o – esse mergulho é uma oportunidade crucial de reinventar o modus operandi, de desconstruir algum padrão que talvez tenha se tornado obsoleto e que vinha se mantendo ativo por puro apego ou mesmo por desconhecimento de outros modos. Isso fica evidente nos relatos diários de como pessoas mudaram seus hábitos de consumo, alimentares, recreativos (…) e de como empresas alteraram suas logísticas de funcionamento. Pode ser que essa reinvenção seja temporária em função das quarentenas ou até mesmo duradoura, mas meu ponto aqui é que o foco está no resultado pretendido: a reinvenção com objetivos produtivistas, de retorno a um fluxo contínuo de entrega de resultados.
Foco na travessia
2o e o que mais me interessa: Sobre o quanto olhar para dentro, além de necessário, é, em si, um modo de atravessar o momento que vivemos. Focar no processo de investigação interna com outro objetivo além da busca por saídas: o de torná-lo um hábito valorizado e contínuo. Se dessa vez a autoavaliação foi imposta, e amargura na boca, o que realmente impede que logo adiante ela esteja prevista e que tenha sabores mais agradáveis?

Com isso suponho que seja possível que as jornadas de investigação não estejam apenas montadas sob caráter produtivista, pautado na única missão de chegar a algum lugar (rearranjar os móveis da casa, as saídas ao mercado em busca de abastecimento alimentício, adotar homeoffice para continuidade de um produto ou serviço…), mas que sejam também admiradas por seu processo e pelo que ele revela de nossas subjetividades – o que acredito ser tão digno de valor e de pequenos (o que não os caracteriza como inferiores) aprendizados.
Aqui, diferente da primeira frente investigativa que citei, dificilmente serão obtidas respostas concretas – e talvez por isso esse tipo de processo seja tão desmerecido: por sua ausência de frutos bem desenhados, já que vivemos num mundo focado em obter sucesso (o que é sucesso? a gente fica satisfeito mesmo quando alcança esse tal…?).
Esse método trata apenas de praticar, de abrir mão da certeza de obter resultados mensuráveis por um determinado período de tempo. E que mal irremediável pode haver nisso?

Só pra citar por cima, falo de jornadas investigativas com Dragon Dreaming, Comunicação Não-Violenta, criar/manter um diário, Conversas Apreciativas, filosofia, práticas religiosas… movimentos que até podem ter “””utilidade””” enquanto deixam marcas em lugares do nosso caráter, mas que essencialmente restauram nossa ética e provocam conexões com o inesperado – se permitirmos tal abertura, sejam elas aplicadas tanto a contextos individuais quanto organizacionais.
Entendo que minha fala pode soar como típica manifestação de privilégio branco ocidental urbano, e talvez a seja mesmo. De longe tenho a pretensão de ditar como algo tão complexo deveria transcorrer. O que estou me propondo é a jogar luz em mais uma alternativa, e não a excluir as outras.
“O homem não nasceu para o trabalho. Quem trabalha não é livre. Para Aristóteles, o homem livre é alguém independente das necessidades da vida e de suas coações. Ele tem à disposição três formas de vida livre: primeiramente a vida que se volta ao gozo das coisas belas, depois, a vida que produz belos atos na polis, e por fim a vida contemplativa, que se conserva na investigação daquilo que não passa, se mantém no âmbito da beleza perene. Segundo isso, são livres os poetas, os políticos e os filósofos.”
byung-chul han, em ‘Sociedade do cansaço
Enquanto as grandes ou complexas ações voltadas “para o mundo exterior e objetivo” estão suspensas ou instáveis, a simples memória dessa impossibilidade de agir pode nos fazer agonizar – embora tal angústia não seja a única opção de travessia existente. O pulo do gato aqui é que não sabemos que podemos acessar ou criar essas outras ações, até que nos vejamos diante da oportunidade de fazê-lo.
Por padrão, entramos em desespero na busca pela sobrevivência (seja do cotidiano pessoal ou do trabalho) e automaticamente eliminamos outros cenários resolutivos pra ruptura causada pela pandemia. Neurocientistas saberão explicar melhor do que eu que isso é a uma manifestação da ansiedade, um mecanismo de defesa que preparava nossos ancestrais para fugir ou lutar quando algum perigo de morte se acercasse. Ainda que os riscos existam (se milênios atrás a ameaça era um crocodilo, hoje é um vírus mortal circulando descontrolado lá fora…), temos um contexto bem diferente de onde extrair recursos pra garantir sobrevivência.
Como outro exemplo, evoco ainda o conhecimento transmitido nas culturas do feminino selvagem, um agrupado filosófico, psicológico e popular de saberes de origem ancestral, voltados ao autoconhecimento individual e coletivo das mulheres. Seguindo esse fio, quando uma mulher percebe-se sozinha frente a grandes adversidades, se deixar suas energias queimarem apenas em desespero ela não acionará sua chama criativa, e com isso nunca conhecerá a fundo suas potências geradoras:

“Pode ocorrer que uma mulher tenha medo de não ter segurança ou certeza mesmo por um curto período de tempo. Ela apresenta desculpas em quantidade maior do que a dos pelos de um cachorro. Ela só precisa mergulhar e ficar sem saber o que vem depois. É a única atitude que irá recuperar sua natureza intuitiva.”
Clarissa Pinkola Estés, em ‘Mulheres que correm com os lobos’
Da capacidade de criar a partir do zero, ou de muito pouco, podem sair novas respostas para enfrentar o mundo e reinventar-se diante dele, fortalecida por recursos que se originam na própria potência de vida. Diferentes culturas nomearão isso como busca da felicidade genuína ou como missão de vida, por exemplo. É a ausência de outros artifícios que anteriormente estavam disponíveis e eram usados de modo automático (influência cultural, familiar, social, dos mercados… ou seja, estímulos totalmente externos) que joga a mulher numa dura jornada, mas da qual ela não sairá de mãos abanando, se souber fazer desse mergulho em suas profundezas um nutriente estrutural de sua vida cotidiana.
Por fim, gosto de pensar no foco na travessia como um percurso que muito bem pode nutrir e ser parte dos projetos que abraçam a colaboratividade e o código aberto. Vejo aí uma oportunidade de enriquecer a diversidade e a inteligência coletiva da comunidade que se reúne em torno de uma proposta de ação direta ou de desenvolvimento de software. Tal proposta pode ser executada inserindo nas tarefas do trabalho dinâmicas que permitam trocas significativas e subjetivas entre as colaboradoras, por exemplo. Pela flexibilidade implicada em sua natureza, entendo que tais projetos têm sua potência justamente em serem predispostos a adaptações, o que também os torna inclusivos e, quiçá, cosmovisionários.
Na próxima vez em que você se perceber em solidão e/ou impossibilidade de agir e aparentemente sem recursos pra lidar, tente trocar a negação pela apreciação, a aversão pela curiosidade e o desespero pelo proveito 🙂
Ou simplesmente escreva pro seu blog.